Debaixo da figueira que ficava pouco
acima da queda d’água, o velho barco estava preso à margem por uma cordinha
que mais cedo ou mais tarde seria rompida pelo tempo
Acontecesse durante a noite e ficaria à deriva e sabe-se lá onde iria
parar...Mas era um velho barco, que se danasse.
-Ingrato, quantas vezes você me acordou
de madru-
gada para irmos ao rio; quem adorava remar de manhãzinha para ver o sol
nascer? . Lembra que eu, você e o barco formávamos uma trindade, que se não era
santa, era uma verdadeira poesia: um velho, seu neto e um barco emoldurados
pelos primeiros raios de sol da manhã.
Maurício, já engenheiro formado, veio
passar férias no sítio que pertenceu ao avô e que agora era administrado por um
tio; de posse de umas latinhas de cerveja, tinha se ajeitado perto do velho
curral e estava ali a observar o rio da
sua infância, enquanto o cine do tempo fazia passar cenas de sua vida.
-Puxa vida, vô , para que serve esse
velho barco, ninguém mais está a usá-lo, se ele se romper de sua amarra, irá
parar nas mãos de alguém que ainda possa dele usufruir.
-Filho, esse barco sou eu; você quer que
eu me vá?
O jovem engenheiro acendeu um cigarro e
riu.Lembrou-se da primeira vez que fisgou um belo barbado e não agüentava
trazê-lo para o barco.Pediu ajuda do avô e esse disse não:
-Você o fisgou, o peixe é seu, arrume-se
com ele.
Comeram-no ensopado, preparado pela avó;
vencera a sua primeira batalha, dela se lembraria para sempre e seu velho avô
era personagem importante no feito.
Outro personagem era o barco; algumas
tábuas soltas, o número da licença já apagado mas a proa ainda apontando firme
para frente, pronto para seguir, obediente aos remos se não tivessem ido com as
águas da última cheia.
Alguém já disse que o silêncio é uma janela fechada para a rua; ali naquela paz, o seu mundo e tudo o que amou um dia
estava à mostra de maneira escancarada, sentia até o cheiro do fumo do cigarro
de palha que o velho fumava.
Abriu outra cerveja; seus pensamentos
fizeram com que esquecesse a latinha já aberta e o líquido esquentou....Estava
chorando.
-Vô, onde está aquele molinete e aquela
vara amarela que o senhor comprou para mim?
-Uai, vai lá no celeiro, tira aqueles
arreios para um lado, que ela deve estar ali em baixo do girau; inclusive, seu
moleque, é preciso engraxar o molinete.
-Ah! Tá...
O avô, apesar de ter comprado para ele
um molinete, gostava mesmo de pescar com as grandes e fortes varas de
bambus.Não permitia que ninguém pescasse com elas:
-_Sabe filho, se outro usar, tira a
embocadura.
_ Vô, o que é embocadura?
-Embocadura é...olha lá, sua avó esta
chamando.
_ Não quero ir agora, vamos ficar mais
um pouco.
Não é que ele escutou mesmo a voz da avó
chamando
e dando bronca :
-Leôncio, você coloca mau costume no Maurício,
vou falar pra Ritinha não deixar mais ele vir aqui no sítio.
-Você agora é um doutor, meu neto; meu
orgulho maior.Nunca permita que este sítio se perca e, sobretudo, cuide do
velho barco. Ele é um elo muito forte entre nós dois. Eu, você, o rio e ele
seremos eternos, pois somos um só.
Como já era noitinha, um vento mais frio
vindo do lado sul, os últimos raios de sol se misturando com as águas calmas que
iam; Maurício saiu do seu enlevo e caminhou em direção à casa.
No caminho, lindas flores silvestres;
fez um pequeno e lindo buquê, contornou o velho poço artesiano, abriu a pequena
grade e depositou o mimo entre duas sepulturas.
Um comentário:
Gostei muito desse passeio nostálgico e pleno de memórias, Hamilton. Especialmente interessante o final. Parabéns!
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