Meu primeiro livro virtual

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Um velho, um barco



                     



Debaixo da figueira que ficava pouco acima da queda d’água, o velho barco estava preso à margem por uma cordinha que mais cedo ou mais tarde seria rompida pelo tempo
Acontecesse durante a noite e  ficaria à deriva e sabe-se lá onde iria parar...Mas era um velho barco, que se danasse.
-Ingrato, quantas vezes você me acordou de madru-
gada para irmos ao rio; quem  adorava remar de manhãzinha para ver o sol nascer? . Lembra que eu, você e o barco formávamos uma trindade, que se não era santa, era uma verdadeira poesia: um velho, seu neto e um barco emoldurados pelos primeiros raios de sol da manhã.
Maurício, já engenheiro formado, veio passar férias no sítio que pertenceu ao avô e que agora era administrado por um tio; de posse de umas latinhas de cerveja, tinha se ajeitado perto do velho curral e estava ali a observar o  rio da sua infância, enquanto o cine do tempo fazia passar cenas de sua vida.
-Puxa vida, vô , para que serve esse velho barco, ninguém mais está a usá-lo, se ele se romper de sua amarra, irá parar nas mãos de alguém que ainda possa dele usufruir.
-Filho, esse barco sou eu; você quer que eu me vá?
O jovem engenheiro acendeu um cigarro e riu.Lembrou-se da primeira vez que fisgou um belo barbado e não agüentava trazê-lo para o barco.Pediu ajuda do avô e esse disse não:
-Você o fisgou, o peixe é seu, arrume-se com ele.
Comeram-no ensopado, preparado pela avó; vencera a sua primeira batalha, dela se lembraria para sempre e seu velho avô era personagem importante no feito.
Outro personagem era o barco; algumas tábuas soltas, o número da licença já apagado mas a proa ainda apontando firme para frente, pronto para seguir, obediente aos remos se não tivessem ido com as águas da última cheia.
Alguém já disse que o silêncio é uma janela   fechada para a rua; ali naquela paz, o seu mundo e tudo o que amou um dia estava à mostra de maneira escancarada, sentia até o cheiro do fumo do cigarro de palha que o velho fumava.
Abriu outra cerveja; seus pensamentos fizeram com que esquecesse a latinha já aberta e o líquido esquentou....Estava chorando.
-Vô, onde está aquele molinete e aquela vara amarela que o senhor comprou para mim?
-Uai, vai lá no celeiro, tira aqueles arreios para um lado, que ela deve estar ali em baixo do girau; inclusive, seu moleque, é preciso engraxar o molinete.
-Ah! Tá...
O avô, apesar de ter comprado para ele um molinete, gostava mesmo de pescar com as grandes e fortes varas de bambus.Não permitia que ninguém pescasse com elas:
-_Sabe filho, se outro usar,  tira a embocadura.
_ Vô, o que é embocadura?
-Embocadura é...olha lá, sua avó esta chamando.
_ Não quero ir agora, vamos ficar mais um pouco.
Não é que ele escutou mesmo a voz da avó chamando
e dando bronca :
-Leôncio, você coloca mau costume no Maurício, vou falar pra Ritinha não deixar mais ele vir aqui no sítio.
-Você agora é um doutor, meu neto; meu orgulho maior.Nunca permita que este sítio se perca e, sobretudo, cuide do velho barco. Ele é um elo muito forte entre nós dois. Eu, você, o rio e ele seremos eternos, pois somos um só.
Como já era noitinha, um vento mais frio vindo do lado sul, os últimos raios de sol se misturando com as águas calmas que iam;  Maurício saiu do seu enlevo e caminhou em direção à casa.
No caminho, lindas flores silvestres; fez um pequeno e lindo buquê, contornou o velho poço artesiano, abriu a pequena grade e depositou o mimo entre duas sepulturas.





Um comentário:

Marcelo Pirajá Sguassábia disse...

Gostei muito desse passeio nostálgico e pleno de memórias, Hamilton. Especialmente interessante o final. Parabéns!